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À Beira da Lua

À Beira da Lua

30.11.20

águas de barro


Nuno Casimiro

pensamos tanto
sentimos tão pouco –
passa um pássaro que passeia o seu passo
a altivez de um voo
a roçar as águas de barro
num meio de tarde
com catorze por cento de probabilidade
de dilúvio.
o eco lá de cima
enche os ouvidos de purezas
e de arrasto chega um choro quente
que transborda o fosso de uns lábios
com tanto por acertar.

rodopia um sentido de beleza
reúnem-se as nuvens e o céu estala
em tons de aviso prévio
sobre o alvoroço celestial.
alguém acima das coerências
prime um qualquer botão

quase cegamente
quase descomprometidamente

e ignoramos a razão de haver alguém acima.
nem chega a ser questão
contrariar as desavenças dos abismos
debaixo da língua.

por um longo tempo
contemplo a fachada que se ergue –
tudo é a fundação do desconcerto.
mantém-se o cheiro da água barrenta
e os voos vão cada vez mais a fundo
com propósito visceral.
uma voz conhecida restabelece a ordem
e brindo com o rimbaud
ao ânimo de beber a sós
sob a batuta do incompreensível.

30.11.20

a rebolar se vai


Nuno Casimiro

hoje em dia escrevo regularmente
no bloco de notas móvel em jeito tele
mas lá consigo levantar o pescoço
para acompanhar
surdamente (solenemente)
o ciclo lunar.
regresso aonde soube ter presença
fiel ao descompromisso inerente
nas têmporas de meia lua
sem brilho.

lá vou eu,
não andando mas a rebolar
se vai,
enquanto o coveiro das mil noites
fala sobre os cortes de água
na sua rua de sempre
no descanso de um dia atarefado
a recuperar crenças do outro lado
da memória.
o coveiro já eu o havia visto
numa das mil noites
no tasco deste lado da ponte
descomprometido do peso da farda
num regresso a beber sem copo
sem prestar atenção aos murmúrios
de quem ri mais alto.

fiquei de ir à segunda garrafa
mas não pára de chover mesmo aqui em cima, no topo dos gritos
de quem sofre se não vir vénus,
o doce olho do infinito.
penso no coveiro
se ele levou a pá de casa
na primeira noite.
tem a cara ampla e de quem bebe cerveja
só para respirar um pouco.

assisto à constatação visceral
da ausência de melodia
na voz de um anjo
que não nasceu para o ser,
enfiado numa gaiola imperceptível
amarela que foi azul
perdendo o pio mal veio a tempestade.
penso nas covas ainda vazias
que o coveiro escavou à pressa
numa das mil noites.

só resta o cheiro das noites
e a chuva que nenhuns olhos enche.

29.11.20

ruas cheias


Nuno Casimiro

pouco ou nada fiz de mim.
troquei todas as voltas
às vozes na roda
e tropecei
         em cada
                pensamento
                                íngreme.
catapultei o meu reflexo
para fora do alcance da chuva
que cai sem parar
              sem querer
ao passo de um desamparo
que domina
cada esquina detalhada.
saio à rua e tudo me é estranho
                                            e longe.
olho as pessoas que se fintam,
o chão que as cega,
as beatas mastigadas,
o tédio das ruas cheias –

tudo tão longe,
tudo tão perfeitamente encaixado
no meu desamparo...
não sei de mim
nem das dobras das camisas
que subtilmente amarrotam
um dia seguinte.

28.11.20

aquilo que falam


Nuno Casimiro

não sinto nada daquilo que falam
apenas a tristeza que persegue cada final de dia. desce então com o rio uma amargura extenuante
sentindo-se a comoção das vidas vazias
em cada reflexo das luzes paradas
sem iluminar qualquer fala mais ampla.
ah, que execrável é não sentir nada...
ouço quem diga maravilhas sobre os dias de chuva mas nunca sentiu a sombra das nuvens cheias e dos céus malditos, pesados, carregados de melancolia que se cola ao peito e não deixa sequer pensar.
nunca sei daquilo que falam.
chego perto de sentir vida em mim
ao decorar as rugas delicadas de quem se deita a meu lado
em busca de uma ponta de conexão
com as perguntas que não deixam dormir - 
nem sentir.
não sinto nada. às vezes julgo-me a nadar mares sem maré
em cada braçada um recuo
um percalço em cada miragem de terra firme.
fico sem pé ao despertar e sufoco na realidade que nunca me tocou.
serei mais breve do que previa
e talvez nesse instante, daqui até não haver mais mar,
possa finalmente partir de onde nunca antes tinha chegado.
ah, que execrável é não sentir nada...

 

27.11.20

calor de pensar pouco


Nuno Casimiro

Procura os teus tormentos e as palavras que nunca disseste
Compila tudo num cocktail de imaginações ignóbeis
E sai à rua.
Deste lado do rio os anseios dispersam-se e cria-se uma bolha de ar
À tua volta.
Reparas que falta algo na moldura que unifica as analogias das vozes estranhas.
Recapitula a última meia hora e escreve um poema sobre ti
Suspira a tua presença e procura sinónimos.

(Chega-me uma sombra que adormece o calor no pescoço – calor de pensar pouco)
Bebe uma cerveja e pensa em quem nunca pensaste. Brinda com os males
Embutidos na pele.
O peito abre-se e dele salta um brilho, empapado em lágrimas das vidas anteriores.

Seca esse brilho e respira. Inspira os cheiros de pimentos grelhados
E brinda com as memórias voláteis.
Finta os desassossegos que te acompanham durante o sono e faz-te crer que a luta ainda nem começou – a luta da qual ainda ninguém sabe.
Prepara-te. Afia os lápis e destrói os preconceitos de uma borracha sufocante.
Sai à rua e grita ao que vens. Se não te ocorrer nada canta qualquer coisa do tio b. Alguém quererá saber onde acaba o Gilão. E onde começam os milagres das tardes sobre um manto verde.
Desconstrói a tua vista e alarga o horizonte das ruas ribeirinhas. O rio corre calmo e o comboio sempre passa à hora combinada. A terra treme.
Nós trememos as convulsões de um relógio certo.

(O comboio ali vai, mas não se lembra de levar o meu pranto)
A cerveja aquece os ânimos frenéticos e o pânico das madrugadas torna-se mais estreito. O receio dos cabelos desarrumados faz ter uma voz doce, pouco audível nestes dias estranhos.
Finta os choques com a realidade que não é tua
E desaparece na neblina de um dia atípico. Mas só se souberes o que escrever.
Faz-te crer que existe um qualquer apetite em ti – um sentido sensorial.

(Deixa de fazer sentido procurar um lugar ao sol
Onde possa parar de chorar)

Não creias nas ilusões que preenchem cada mover de mão. Não sigas o rasto incrédulo de cada palavra mal pensada.
Demora-te (sozinho). Repara nas esquinas de cada luar, sente o avolumar dos dizeres mais bonitos dentro dos silêncios mais estranhos à tua forma de caminhar. Não te deixes cair nos fossos que separam o teu peito das lágrimas exageradas à escala de uma exaltação supérflua.
Entende um pôr do sol. Derrapa perante os devaneios dum rio de vinho tinto e envolve o teu olhar nos olhos exploratórios de um sítio incomum, repleto de pessoas que partilham o mesmo constrangimento.
Reserva as tuas expectativas para quando não existe nenhuma (nem as exijas) – talvez aí tudo aconteça sem quereres (como um susto, como um sorriso inesperado, um beijo, uma alucinação).
Brinda com o carinho de um olhar cúmplice, mesmo sabendo que tudo se esfumaça.
Amanhã existe se não politizarmos o sentido de um cortejo grotesco contra os bares que fecham dentro de nós. Tudo fecha dentro de nós, na verdade.
Derrete-te com as noites infinitas sob o som esotérico de hesitações explorativas. A visão embacia-se e os dedos precisam de estalar logo após chegares onde nem precisas de chegar.
Faz-te crer que tudo muda a cada hora, a cada canto dos pássaros, a cada facilidade incoerente.
Bate as palmas quando alguém se arrisca. Talvez venhas a precisar desse calor – condiz com as discrepâncias da tua natureza fugaz.
Brinda às sensações que nunca mais vais sentir.
Vais notar-lhes a falta num fim de tarde a fugir de ti.

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