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À Beira da Lua

À Beira da Lua

29.03.21

olhar cruzado


Nuno Casimiro

Caminho desajeitado
a passo largo e apressado
sob o olhar cruzado
de uma lua que antes de encher
já mal se deixa ver.

Afogo o peito em medos
e sinto nas pontas dos dedos
um destino que ninguém cumpriu.

Sou puxado em frente e
a cada segundo ajeito as lentes.
Repenso a voz por trás dos dentes
enquanto tudo escurece
sem ritmo nas preces.

Humedeço a boca cheia de urgência e
enleio as palavras sem cadência.
Um calor súbito restabelece o grito.

24.03.21

torre de vigia


Nuno Casimiro

Apresento um rosto
pouco convicto
das ilusões
soberbas.
As nuvens bem por cima
de um despertar
desvendam um calor
insolente – haverá sol
mesmo depois de um relampejo.

Cruzo as pernas
enquanto encaro
a dormência das almas
quebradas.
Viajo de olhos fechados – confio
vaticínios ao desenrolar
das mãos alheias que emprestam
rumorejos adocicados.
De quando em vez cresce espírito
que acalenta a palavra.

Já me queima a pele
e uma mosca sobrevoa-me – sinto-me
como uma torre de vigia a indicar-lhe
o pouco sentido das coisas.

Presto atenção à falta de padrão
que me preenche
a boca.
Devagar se faz tarde –
abraço a morosidade
e respingo os fatalismos
dos desejos.

24.03.21

brando rumor das manhãs


Nuno Casimiro

Abro os olhos:
o corpo demora.
Espevito um bocejo
como um rugido incerto.
A claridade de um dia novo
invade os sentidos e a escuridão
do quarto em mim. Duvido das intenções
de um alarme que se repete –
um grito que anuncia o brando rumor
das manhãs.
Endireito um desvio de coluna
e aqueço as mãos num café
bebido com pressa.
Alargo a vista através da janela
que dá para os céus horizontais
e para o eco dos cães que ladram
presença: ninguém passa por perto
que me diga que horas são
no outro lado da inquietude.

Lanço um bafo espirituoso –
o fumo dança além mim
como se sobrevoasse cogitações
milenares à volta de uma fogueira
aborígene.

Hesito perante o primeiro pensamento.
Consinto o silêncio
e ajeito a cegueira diurna –
daqui a pouco acordar-me-á
a noite.

21.03.21

primavera


Nuno Casimiro

A primavera cedeu
                   
           ainda soa a dois
anos atrás. Mudei de café
é horrível
mas sinto-me acordado
apesar de
só desejar dormir
por entre os barulhos
e os cheiros. Pássaros cantam
no quintal atrás das vistas
sujam tudo
parece que fazem lixo
de propósito
estão chateados. Cheios de
sobranceria. Cheios de
música.

Felizmente comprei
umas garrafas na loja
que faz canto com os
aporismos. A estreiteza ajovia
cada passo e insectos caem
mortos quando fito
o chão que já ferve.

A primavera cedeu
        
           ainda soa mal
projectar sombras
sobre passados. Dobro
as mangas da camisa
amarroto um dia ao sol
desmancho uma flor.
De esguelha vejo o tempo
esgueirar-se. Fico no
espaço entre as palavras
a pensar nas tuas mãos
de lavanda.

18.03.21

contravolta


Nuno Casimiro

Transita o espírito entre margens
incólume como a pátria
de um peito
cheio
     já sondam as melgas
sobre o que virá a seguir
ao desamparo
sem brio

Tatuo os maneirismos
sem perguntar
ao que venho
     precipito vicissitudes
à boleia de um dia
de sol

Esperam-me sobranceiramente
as bicas até cima
     sorvo as águas paradas
até só restar choro
no fundo do
gilão

Decresce a hora que se apressa
ao ritmo de batimentos
assíncronos
     desvirtua-se um passo
e a língua articula
arrepsia

Pesa o corpo de coisa despropositada
que não deve ser ouvida
no câmbio das noites
com estrela
     dou volta e meia: sinto tudo remoto
imiscuído na meia-sombra
junto às damas-
da-noite

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