Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

À Beira da Lua

À Beira da Lua

29.09.23

sensação de coisas soltas


Nuno Casimiro

Bate a noite: é paranóia em
frenesi. Porém há roupa estendida que
antecipa outro dia, outra chance de
desafiar coisas engasgadas. Bato o pé: a
sapatilha gasta diz de si e conta
histórias. Tanto quilómetro salteado à
beira da mesma melancolia:

por aqui vou
já não há-de faltar muito

Quero ver esse mundo novo. Descanso
o cigarro na ranhurazita do
cinzeiro. Espero. Sublinho frases que
até fazem sentido e recosto-me
nas sidelines do trânsito. Vejo a brisa
soprar tudo p'ro mesmo lado. Buzinas
entorpecem a desordem adocicada
de cidade grande. Ocupo-me com outras
coisas, outros barulhos. As mãos
gesticulam probabilidades. Ponho-me a
caminho e recupero o cigarro:

é desta que vou
não há-de faltar muito

A travessa vem compacta na
casa isa – encho a barriga e
contrario a moleza. Pinga p'la testa o
esforço de limpar o prato por inteiro:
venho de longe simulando valentia.
Sem grande arcaboiço. Certo.
Hesito: retomo o caminho dos
dias iguais. Prendo um choro antigo e
antecipo a chuva que há-de chover. Ato
bem atada a sensação de coisas
soltas. Mas nada é tão compacto como
os escalopes na casa isa.

por aqui estou
já não há-de faltar muito

27.09.23

efemeridade de um beijo


Nuno Casimiro

Sintonia que se insinua inquieta entre
inalienáveis vislumbres de
outras margens. Fantasia em espiral que
se faz turva. Desces até uma cave que
sussurra dizeres desmanchadamente
tímidos. Alguém arrota premonição
a tempo do intervalo – já incha a barriga
de silêncio emprestado.
Há uma brisa: mal te dás conta da
infindável noite que se pinta. Esquece o
decoro daquilo que se decorou. As
calças já estão ruças de tanto
lhes limpar hipóteses.
Vem um vento: falta agasalho à
palavra que mal se ouviu entre
a penumbra de um copo que se
pediu mas não chegou a vir. Ranges
os dentes e questionas para
onde se distancia todo o amor que
se fez outrora, na voracidade dos
dias mais claros, na efemeridade de
um beijo que te já não sabe
ao mesmo. Pegas nessas dúvidas
enroladas nas mãos trémulas e
fazes um dia falacioso como
o anterior: percebe que não
é por acaso que se estranha um
lugar novo.

18.09.23

passeio dos alegres


Nuno Casimiro

semeei uma intenção
e dela pouco brotou em realidade
    o fascínio na órbita da passividade
    acompanha o vento que segue vertiginoso
    neste dia que sussurra chuva e solidão

o desconforto que se apressa
confunde-se numa rua serena
pautado por sôfregas investidas
numa cerveja estrangeira
entre vozes que contam como têm passado
ou lábios que seguram cigarros hirtos

decorei o eco sobre um filme que vi
tentando extrair algum perfume
que adocique uma forma de pensar
      reinvento outra observação
      a cada esquina que bafeje
      uma perspetiva de poema

mas sinto-me nulo
e quedo-me quieto
ao sabor do fresco
de um setembro ainda
por fazer esquecer verão

sentei-me noutra rua
reparo que me sabe melhor
a cerveja portuguesa
esta mais agitada e conversadora
         no largo acerca há uma pequena feira
        por onde passam os mirones entre gracejos
       respeitando a rota do passeio dos alegres
      como sempre diz o meu pai
entre eles um chico fininho
na verdadeira assumpção da expressão
      na amplitude da sua estreiteza
      simula a postura de quem sabe onde vai
      sem merdas sem tempo para respostas
      voando no passadiço com cabelo dylanesco

estico as meias amarelas
e passeio ao largo da minha inércia
reparo nas cores nas línguas trauteadas
ouço as dores alheias cães que se emancipam
a perna adormece e não consigo ir a nenhures
é dar-lhe tempo enquanto se faz noite