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À Beira da Lua

À Beira da Lua

31.01.24

hoje encerrou-se o poema


Nuno Casimiro

O meu avô não morreu.
Nasceu a concepção de eternidade.

Ainda o estou a ver
à cabeça da mesa de natal,
enleado num silêncio só seu.
Solta o seu sorriso maroto
quando alguém o interpela.
Demora uns longos segundos
para reconhecer uma voz,
uma presença,
tão emaranhado que está
nos seus pensamentos.
Olha absorto ao comprido do bordado e
parece não reparar nas múltiplas vozes
que o tentam alcançar.
Nunca o vi recuar perante
um copo de vinho ou um scotch
para suavizar a digestão.
Distrai-se e o cálice parece ter vida
de tanto sabor que promete.
Sempre foi boa boca,
a minha avó que o diga.
Por vezes até lambão,
a minha avó que fale das nódoas.
A comida está boa e ele acompanha
o ritmo da mesa a cada brinde.
Estou presente, vaticínio de patriarca
que não fraqueja perante os inúmeros
rounds que já enfrentou.
À sua volta o clima de festa prossegue
mas ele regressa ao seu silêncio.
Recupera do bolso uma série de escritos
impressos em folhas A4.
Vem daí poema!, penso eu entre dentes.
Aproximo-me do seu posto
de chefe honorário da família
e espreito as suas hipóteses
para finalizar a consoada.
Entre balbúcios e palavras mastigadas
sempre encontra o tom correcto
para afirmar a sua posição.
As pessoas sentem e soltam gracejos,
batem palmas, enchem os copos.
Não percebem que um poeta,
mesmo pouco falando,
adora ser ouvido.
Enceta novo poema,
este num tom mais pujante,
confiante de si mesmo
e dos seus versos.
Voam grossos perdigotos
e vaticínios de vidas prósperas.
Eis que olha em redor,
mira a sua família,
enche o peito de emoção
e solta um contagioso Viva o Natal!.

Desde então
nunca mais o vi
nunca mais o verei
nunca mais ouvirei um poema seu.

Pensava que o meu avô
jamais seria derrubado
tal e qual um pugilista
que se recusa a ir ao tapete
e lá permanecer.
Pensava que nunca ficaria
um poema por terminar.

A vida alonga-se
até se perder a conta
das voltas que se deram
das saudades que se sentiram
dos valores que se ensinaram
dos totolotos que não se ganharam
das pessoas que se contagiaram
dos amores que se geraram

Permanecerão na memória
o seu sorriso maroto, o regozijo
de estar rodeado dos seus
e a sua frase:

Eu sou Eu, e não admito que interfiram no meu Eu.

Hoje fez-se silêncio.
Hoje encerrou-se o poema.

22.01.24

formas irrequietas de sentir


Nuno Casimiro

o corpo segue pisado,
chamuscado, perturbado até.

invade-me um silêncio sintetizado
após um voo horizontal
duma palavra mal pensada.

navega pela noite um certo eco
canibal, voraz, insalubre.

desconfio das horas mortais
e aperto o coração
entre deslizes.

faz falta pensar mais alto e vertical
para enquadrar os ímpetos secretos.

neste corpo pesado
sempre houve espaço
para arquivar mundos
         sem alguma vez catalogar
         as formas irrequietas de sentir.