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À Beira da Lua

À Beira da Lua

28.04.24

parcimónia solta dos dias


Nuno Casimiro

vivo num mundo vasto
ora é verde ora é fumo
às vezes plano mas sobretudo redondo
e tem esta tendência de normalizar
aquilo que vai sentindo.

não sinto que alguma vez
tenha estado em mim.
mas já fui a sítios
alguns bonitos
como aquele
na serra de monchique
em que assámos chouriço na lareira
e subimos até ao alto da fóia.
também um movimento de mão
a romper pedaços de água
nas poças de serralves.
faz calor quando
menos se espera que faça
mesmo entre pequenos
intervalos de chuva –
sente-se a esperança ferver,
como um relato de um golo
que se ouve a acontecer.

rompo o espectro
duma coisa mal/dita
e passo às segundas intenções.
nem tem mal presumir o preço
que um bolso vazio possa aceitar.
roça um vento bruto que despenteia
o que se vai dizer a seguir.
tenho que perceber o meu lugar
na parcimónia solta dos dias.

recupero um sentido perdido
acossado pela néscia vigilância
de um prelúdio sem beijo/sem flor.
cruzo as pernas perante
um momento a sós –
falta fazer crer vontade
ao pardacento espírito
que olha sempre pro lado errado
das paisagens mais verdes.

esvai-se a paciência
entre linhas/entre repetições.
parece que é sempre véspera
do mundo terminar.
mas as coisas resolvem-se
e os rios enchem-se de novo,
as flores voltam a desabrochar
e as ruas recuperam largura
a cada prenúncio de sol.
vai-se fazendo acontecer
mesmo que na antecâmara
duma alvorada mais silenciosa.

26.04.24

à beira do imprevisto


Nuno Casimiro

mãos
movimentos
mãos em movimento
movimento de mãos

entre pensamentos
vem síntese a cada gesto de mão
mão contramão sem mão
sem pensamento
mão em dança                 ternura
                                                    vida
'tá a pedir cigarro
mão sem saber o seu lugar
mão que não encaixa
no bolso mais próximo
mão encontra bolso rasgado
comichão bem dentro do nariz
mão que te afaga os maus pensamentos
e leva à boca a mesma cerveja
mão sem mão que meça palmo preciso
sei lá eu até onde chegam
10 centímetros em trânsito

mão que fala demasiado
sobre mãos
mão de fumo em riste
nem apaga fogos
foco no movimento
é preciso precisão à beira do imprevisto
mão desenha imprecisão
desdenha regra e compasso
'tá aí qualquer rasgo mais necessário
mesmo sem régua nem esquadro
sem trégua nem esboço
dum rascunho sai valor inseguro
precipitação dum sapato que escorrega
percebe que do caroço sai árvore
e com destreza descasca fruta
mão solta      sozinha      não tá limpa
remexe e desarruma
apruma esse sentido
faz-se abril mexendo fundo
não tá certo?

digo mais do que sei
e arrebato-me ao que venho
ficam as mãos à deriva
de um movimento

volta a chuva
e eu arredado da fala seguinte
as mãos dão a dica
a impaciência cresce
não sei onde me sente
não sei onde me sinta
pensava que os dias claros
tinham vindo pra ficar

five leaves left
já dizia o nick drake
sequestrado por sensações
que mal se agarram à voz
carimbo o espírito pétreo
que me despe causticamente
e volto a assumir
um movimento de mão antigo
de cabeça inerte e co[r]po grande

[mãos
trémulas]
haja litoral
haja movimento
haja onda revoltada
que desemboque
nesta barragem vazia
mão em repetição
destranco reacção
levanto o copo
e sigo a desenvoltura
duma memória fresca
sobre comer queijo
com marmelada

hoje fico,
vejo bem daqui

24.04.24

recapitulação duma lua cheia


Nuno Casimiro

ao teu lado faz-se jornada
corrida em jeito cíclico
partilho tudo o que sou
ou consigo ser
banho-me em tudo o que tu és
e brilho com o que te permites ser.

cheira a manhãs de leve acordar
este privilégio de ter-te tão perto.
as estações alteram-se
sem dar conta da pressa
com que o tempo corre.
na companhia das flores
que se erguem,
e das árvores que
ora se despem
ora se enchem de folhas
mal as chuvas
nos dão tréguas,
anoitece sob a batuta
deste amor embevecido e
amanhece na constante
recapitulação duma lua cheia.

quero passear contigo
entre montanhas
e florestas,
desmistificar praias
e amarrar amor
num mergulho impetuoso.
quero agarrar num beijo
que ficou por dar
e multiplicá-lo em
outros milhões deles
que dar-te-ei ao longo
das primaveras que nos restarem.
quero ficar naquele instante
precisamente antes
de nos encontrarmos
e alimentar-me do êxtase
que é esperar-te, olhar-te
e entender mais uma vez
o quão vaidoso
pode ser um sentimento.
quero ser abrigo que procuras
e ouvido que escuta,
uma mão entre os teus
caracóis doces e
beijo suave na tua face.

porque
és sol que aquece e ilumina
lua que enche e guia entre brumas
vento que empurra e estimula
caudal de rio que refresca e purifica
poema vivo e respiração.

o meu amor é teu
e tu és o calor
na vida.

12.04.24

gotta be above it


Nuno Casimiro

como um poema que te desbrava
sou poeira no ar que consome tempo

falaciosamente sorvo mil cervejas
e estranho barriga volumosa

gotta be above it gotta be above it gottta
be above it gotta be above it gotta be abo-
-ve it gotta be above it gotta be above it

como conversa que não me atinge
sou presença embevecida em distância

estranhamente estranho interesse
num mover de mão que me compromete

saboreio verão num abril remoto
                  cadê mergulho que aprofunde
                         para que lado enrola o mundo

primeiro filtro
depois tudo o resto
(como se faz mesmo?)

gotta be above it

12.04.24

dorso de vaga


Nuno Casimiro

entrego este anseio que me ata as palavras
ao intrépido levante que se apressa

não apanho todas as conchas
que te prometi num dia desses de verão
nem capturo aquele burburinho
que um búzio-tritão desvenda

soa longe pensar em praia
e nos escaravelhos
que deixei escapar
entre as mãos
((côncavas))

em trinta anos
mergulhei 100 vezes
e fiz 100 pinos dentro d'água
mas nunca consegui abrir os olhos

não conheço muito
para lá da maré baixa

chego num dorso de vaga
como epíteto sobre os dias vazios

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