30.01.25
o vendedor de memórias
Nuno Casimiro
Na viela mais esquecida da cidade, onde os candeeiros tremiam sob o vento gelado, havia uma loja que poucos conheciam. Não tinha nome nem montra, apenas uma porta de madeira escura e uma aldrava em forma de mão, fria como se nunca tivesse sentido o calor humano. Dentro, o espaço era apertado e abafado. O ar cheirava a velhice e madeira húmida. As paredes eram cobertas por prateleiras irregulares, onde repousavam centenas de frascos de vidro, brilhando tenuemente na penumbra. Não havia etiquetas, apenas cores diferentes, como se cada um contivesse uma chama viva.
Atrás do balcão, sentado com a paciência de quem já viu séculos passarem, estava o dono da loja. Chamavam-lhe Senhor Grigori. O seu rosto era vincado pelo tempo, a barba branca crescia sem pressa e os olhos fundos brilhavam num tom opaco, como se contivessem um abismo. Ele não vendia ouro, nem prata nem relíquias do passado. Vendia memórias.
Naquela noite, quando o vento cortava a pele como lâminas invisíveis, um jovem entrou. Os seus olhos estavam vazios, fundos como poços sem fundo. O corpo magro e os ombros curvados. Movia-se como um fantasma, alguém que já não pertencia completamente ao mundo dos vivos.
— Quero esquecer — disse, pousando uma moeda no balcão. A sua voz era pouco mais que um murmúrio. — Quero esquecer esta coisa que me mastiga por dentro. O abandono. Quero apagar tudo.
O velho olhou-o demoradamente, como se estivesse a pesá-lo. Depois, ergueu-se com um suspiro e percorreu as prateleiras com dedos nodosos. Escolheu um frasco esverdeado e colocou-o à frente do rapaz.
— Este contém uma memória diferente — disse, a voz calma como o mar antes da tempestade. — Um homem que amou em silêncio. Nunca teve a dor da perda, apenas uma saudade tranquila. Aceitas trocar?
O jovem hesitou, mas pegou no frasco e bebeu. Por um instante, sentiu alívio. Mas logo depois algo mudou. A sua cabeça girou, o peito apertou-se. Olhou em volta, confuso.
— Isto… — balbuciou. — Isto não é uma memória.
O velho manteve-se impassível.
— Claro que é.
As mãos do rapaz tremiam. Sentia-se dividido, como se outra consciência se infiltrasse na sua. Pensamentos que não eram seus sussurravam-lhe, confundiam-no. Ele não se sentia apenas diferente. Sentia-se invadido. E então percebeu. Os frascos não guardavam apenas lembranças. Guardavam fragmentos de almas.
— Meu Deus… — sussurrou.
O velho suspirou.
— As pessoas não querem apenas esquecer. Elas querem livrar-se de partes de si mesmas. E eu fico com o que sobra.
O jovem recuou, apavorado. Mas já era tarde. Algo dentro dele quebrava-se, um som inaudível, como vidro rachando por dentro. Caiu de joelhos. Foi então que ouviu outras vozes. O som vinha de trás do balcão, da escuridão onde as prateleiras desapareciam num breu profundo. O velho ergueu a mão e, num estalar de dedos, as velas da loja brilharam mais forte. E o jovem viu-os. Eram três. Homens altos, magros, de pele pálida e olhos vazios. Vestiam longos casacos negros, e a pele parecia seca como pergaminho antigo. Não tinham expressão. Apenas observavam.
— Quem… quem são eles? — balbuciou o jovem, sentindo o seu corpo tornar-se cada vez mais leve, como se já não lhe pertencesse. O velho Grigori sorriu.
— Estes são os que vieram antes de ti.
Os três homens deram um passo em frente, as suas sombras movendo-se de forma errática, como se fossem independentes dos seus corpos. O jovem tentou mexer-se, mas os seus membros estavam rígidos, como se a sua própria carne já não lhe obedecesse.
— Alguns clientes não apenas vendem memórias. Alguns… vendem-se por inteiro — disse o velho, pegando num novo frasco vazio.
O jovem tentou gritar, mas a voz não saiu. Algo dentro dele estava a ser arrancado, puxado para fora como um fio invisível. Os três homens aproximaram-se ainda mais, e, quando o primeiro lhe tocou na testa com um dedo gelado, o seu corpo caiu vazio no chão.
O velho segurava agora o frasco cheio com a nova luz pulsante - a alma do jovem - e colocou-o na prateleira ao lado de tantos outros. Então, olhou para os três homens.
— Um de vocês pode partir — disse ele, apontando para o frasco que antes pertencia a um deles.
O homem mais alto moveu-se primeiro. Aproximou-se do frasco, tocou-lhe… e desapareceu. Uma rajada de vento gelado invadiu a loja. O velho suspirou e olhou para os dois restantes.
— Não fiquem tão impacientes — murmurou. Mais cedo ou mais tarde, sempre aparece alguém novo.
O corpo vazio do jovem ainda estava no chão. Mas não por muito tempo. Um dos homens magros ajoelhou-se ao lado dele e inclinou-se sobre o cadáver. Os seus dedos compridos tocaram a pele do jovem, e, aos poucos, algo aconteceu. O corpo morto começou a mover-se. Primeiro os dedos, depois os braços, depois as pernas. O jovem abriu os olhos mas já não tinham alma. Eram opacos, vazios. Sem nome, sem passado. Apenas mais uma sombra a vaguear pelo mundo. O velho acendeu um cigarro e soprou a fumaça para o ar carregado. Pegou no corpo vazio e guiou-o até à porta.
— Vai. A cidade precisa de ti.
O novo homem saiu para a noite fria, sem rumo, sem lembrança, apenas existindo. O velho voltou para o balcão e passou os dedos pelos frascos, sentindo a vibração das almas presas dentro deles. E esperou pelo próximo cliente.